sexta-feira, 15 de julho de 2011

Yoga, Ayurveda e Tantra!

Pamela Siegel; Nelson Filice Barros
Grupo de Metodologia Qualitativa e Sociologia das Medicinas Alternativa, Complementar e Integrativa, DMPS/FCM/UNICAMP
 

 
Fields GP. Religious Therapeutics, Body and Health in yoga, ayurveda, and tantra [Terapêutica religiosa, o corpo e a saúde em yoga, ayurveda e tantra]. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers; 2002, 219 p.
"Respirar es vivir", o refrão soava como um agradável mantra aos nossos ouvidos, no início dos anos 70, quando praticávamos hatha–yoga e o controle do alento (pranayama) num retiro espiritual, em um ashram,na Venezuela, sob o atento olhar de um mestre yogui.
O "sopro inicial" do yoga no Ocidente ocorreu em 1893, com a chegada de Swami Vivekananda aos Estados Unidos, quando ele proclamou os méritos do yoga no parlamento do mundo das religiões, em Chicago, Illinois. A partir daí, começa a existir um fluxo de mão dupla de swamis que chegam da Índia, trazendo suas técnicas e ensinamentos, como o Paramhansa Yogananda, que desembarca em Boston, nos anos 20, e a "primeira dama do yoga" das Américas, Indra Devi, que se instala na Califórnia, em 1947. No sentido inverso, os ocidentais iniciam uma peregrinação ao Oriente em busca dos conhecimentos e ensinamentos espirituais, como foi o caso Paul Brunton e René Guenon nos anos 1930, Ram Das nos anos de 1960 e muitos outros que os seguiram depois.
No final do século XIX e início do século XX, surgem muitas traduções de obras sobre a Índia e o yoga, e proliferam autores como Max Mueller, Deussen e Danielou, que deixaram referências para a transliteração do sânscrito e criaram cadeiras de sânscrito no Ocidente. Em 1933, Mircea Eliade apresenta a primeira tese acadêmica sobre yoga no Ocidente, na Universidade de Bucareste; em 1943, Theos Bernard defende tese sobre o mesmo tema na Universidade de Columbia, Estados Unidos. No Brasil, Caio Miranda, oficial militar, começa a ensinar yoga nos anos 1940, no Rio de Janeiro, e publica o primeiro livro sobre o assunto, Libertação pelo yoga, em 1960. Finalmente, o yoga atinge a "maioridade", sendo reconhecido por várias instituições de diferentes campos do conhecimento, entre elas o Ministério da Saúde Brasileiro que o identifica, em 2003, como uma Prática Complementar de Saúde (PCS).
Entre o material recente sobre yoga, destaca–se o livro Religious Therapeutics, Body and Health in yoga, ayurveda, and tantra, de Gregory Fields, professor de filosofia da Southern Illinois University. O autor aprofunda na discussão não só do yoga, mas também das medicinas alternativas complementares e integrativas, com texto agradável de ler. O livro é composto de uma introdução, que destrincha a relação entre religião e medicina, e quatro capítulos, que vão alinhavando de forma impecável as representações do corpo nas diferentes tradições de cura, os significados da saúde em ayurveda, o yoga clássico como uma terapêutica religiosa e, finalmente, o tantra em relação ao que chama de terapêutica estética.
No primeiro capítulo, as noções de corpo e pessoa são colocadas no centro dos debates, para que se compreenda como a "filosofia ocidental da medicina" e a "visão transcendental" o representam. Embora a pesquisa histórica da medicina seja profunda, abarcando desde a teoria humoral de Hipócrates até a psiconeuroimunologia, o autor negligencia os aspectos dos estressores psicosociais1, deixando de discutir as influências sociais, ou as privações e privilégios2, nas características físico–anatômicas dos corpos, que influenciam o processo de saúde e doença.
No segundo capítulo, o autor realiza um estudo dos determinantes de saúde para a medicina ayurvédica. Discute a perspectiva biológica, ecológica, médica, psicológica, sociocultural, estética, metafísica e religiosa da medicina indiana, para concluir que o seu fim é o de dar suporte ao indivíduo, para que este avance nas práticas sagradas. Embora o livro fundamente muito bem o valor do yoga clássico, do tantra e da medicina ayurvédica (ayur = vida e veda = sabedoria), que remonta ao segundo milênio antes da nossa era e utiliza a teoria dos humores do Tridosha ("Vatta, Pitta e Kapha") como cosmologia para fundamentar a doutrina médica, a fisiologia e a morfologia3, teria sido interessante incluir a perspectiva de usuários da medicina ayurvédica, oferecendo, assim, dados concretos sobre aquilo que chama de práxis da terapêutica religiosa.
No terceiro capítulo, diferente dos dois primeiros em que apresentou as suas referências filosóficas, Fields vai desenvolver uma matriz conceitual do yoga clássico como uma terapêutica religiosa. Para isto, disseca os aforismos dos Yoga–Sutras de Patânjali, demonstrando ser o yoga um 'remédio" de oito passos, os angas, quais sejam: abstinências, regras de vida, posturas, controle do alento, controle das sensações, concentração, meditação e identificação. A prática desses passos levará ao controle dos sintomas e à cura primordial, que seria a eliminação de avidya ou a ignorância sobre a verdadeira natureza do ser.
No entanto, alguns dos mais consagrados textos sobre yoga, tais como o Hathayogapradipika, Gheranda Samhita e Shiva–Samhita, enfatizam a necessidade da figura do guru, ou seja, do "dissipador de trevas", para que o discípulo atinja os estágios mais avançados do yoga, diminuindo os riscos físicos e psíquicos. O yoga clássico constitui–se, portanto, numa tradição iniciática4, passada de lábio a ouvido, de mestre a discípulo, o que o autor tangencia completamente.
No quarto e último capítulo, a relação entre o "Tantra Yoga" e a terapêutica estética é abordada. Fields estuda o tantrismo mostrando que o seu princípio central é o kriya, a atividade espontânea, e que a corporeidade e a sacralidade são compatíveis no Tantra. Além disso, identifica como essas práticas acrescentam ao modelo de terapêutica religiosa a cura do corpo–mente e alma, pela experiência sensorial e arte religiosa, como a música e a dança. Após analisar o papel da sexualidade nas tradições da Kundalini Yoga e Mantra Yoga, que conjugam elementos tântricos, o autor sinaliza o valor terapêutico da música sagrada, explicando que a pronúncia de cânticos e invocações em sânscrito tem o poder de elevar o ser.
De certa forma, pode–se dizer que o autor apropria–se das bases da medicina ayurvédica, do yoga clássico e do Tantra Yoga para criar o que denomina terapêutica religiosa. Pode–se encontrar um paralelo na obra de Jung, quando toma a noção de numen,relativo a deus, para qualificar a experiência sagrada como um potencial terapêutico. Porém, Fields, não faz nenhuma reflexão sobre a aplicabilidade da terapêutica religiosa fora de seu contexto cultural, embora conclua que, além do ayurveda, do yoga clássico e do Tantra, a comunidade e a "relacionabilidade" são fundamentais para a terapêutica religiosa, nos remetendo a Durkheim5, quando afirma que: [...] religiões como as do Egito, Índia ou da Antigüidade Clássica: [são] uma trama espessa de cultos múltiplos, variáveis com as localidades, com os templos, com as gerações, as dinastias, as invasões, etc. Nelas, as superstições populares estão mescladas aos dogmas mais refinados. Nem o pensamento, nem a atividade religiosa encontram–se igualmente distribuídos na massa dos fiéis: conforme os homens, os meios, as circunstâncias, tanto as crenças como os ritos são experimentados de formas diferentes. Aqui, são sacerdotes, ali, monges, alhures, leigos; há místicos e racionalistas, teólogos e profetas, etc. Em tais condições, é difícil perceber o que é comum a todos. Como descobrir o fundo comum da vida religiosa sob a luxuriante vegetação que a recobre?
O livro tampouco aborda a disputa de mercado entre as diferentes escolas de yoga e sequer refere–se à legitimação das técnicas, a profissionalização de instrutores e o processo de incorporação da terapêutica religiosa nos sistemas de saúde. No entanto, Fields foi primoroso ao unir e lembremos que yug, a raiz sânscrita da palavra yoga, significa junção, união a medicina ayurvédica, o yoga clássico e o Tantra Yoga, situando–os numa interface entre a religião e a medicina.
 
Referências
1. Krieger N et al. Bodies Count and Body Counts: social epidemiology and embodying inequality. Epidemiologic Reviews 2004; 26:92
2. Krieger N et al. Theories for social epidemiology in the 21st century: an ecosocial perspective. International Journal of Epidemiology 2001; 30:668.
3. Marques EA. Racionalidades Médicas: medicina ayurvédica – tradicional arte de curar da Índia. (Série Estudos em Saúde Coletiva, nº 75). Rio de Janeiro: IMS/UERJ; 1993.
4. Feuerstein GA. Tradição do yoga, história, literatura, filosofia e prática. São Paulo: Ed. Pensamento; 1998.
5. Durkheim E. As formas elementares da vida religiosa. o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes; 2000.

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